A luz vermelha escondia a dança afrobeat em que os braços eram pernas cortando o tablado de areia.
"Seja bem-vindo ao maior espetáculo da terra", disse um homem sem rosto, como todos do outro lado... como você - espectador que não lê isso por mero acaso, foi o destino que te trouxe aqui.
E as pernas, em passos largos, se espalhavam pela platéia que esperneava só de pensar que as pegadas no tapete vermelho eram pegadas do lado do seu coração.
"Aqui os sonhos acontecem porque é só acreditar", disse ele passando as unhas pelo corpo, enquanto a platéia via as pernas agachadas sobre o chão-de-milho: a salvação não parecia arranhar. Você tem unhas?
O esmalte afastava o tun-ti-tun daquela canção majestosa, que seduzia a platéia pela púbis com um tesão negativo. Então, quando o homem sem rosto resolveu limpar a maquiagem do seu olho-de-vidro, puxou a lâmpada vermelha debaixo de seu terno.
"Tudo se revela pela luz, tudo se revela pela luz".
E em menos de um segundo, as pessoas começaram a se levantar e se aproximar e se aproximar. Não dava pra acreditar - era muita beleza pra um só lugar!
Batucando o chão como um tambor de pele-de-gato, as pernas ao redor convidavam a entrar na roda que acorda, todo mundo queria ver mais de perto essa tal luz que fazia o mundo girar.
"VENHAM TODOS, VENHAM VER", e o redemoinho de areia subiu poeira pelos olhos do povo ao redor, espremido naquele tablado, tentando respirar o pó que vinha da vida em movimento.
E o volume aumentava, e a luz cegava quem chegava perto, e as pernas dançavam, e o homem-sem-rosto gritava e gritava e os curiosos queriam se revelar, queriam se aproximar e deixar a luz os guiar.
"Mas não pode tocar", impôs o homem-sem-rosto em vão. No mesmo momento, uma mulher o empurrou e tomou com suas unhas a lâmpada vermelha: "Todos merecem ter a salvação!!!" Gritava ela com a platéia delirante, querendo tocar na luz afrobeat 100% pura.
E num estrondo, a cortina se abriu para um palco maior com dois grandes holofotes bem no meio da cara deles, e, dali, eu pude ver de camarote aquele bando de babacas segurando uma luzinha vermelha e gritando por salvação.
Não deu outra. Em dois segundos, todos transfiguraram-se: as bocas uivavam de dor enquanto os braços viravam pernas que cortavam o tablado de areia e se somavam às pernas antigas, que, por sua vez, pulavam de alegria de ter novos amigos.
Não sei se você viu esse espetáculo patético, mas se lê essa história, foi o destino que te trouxe aqui. Depois de dois anos ainda lembro como se fosse ontem - o homem-sem-rosto se recompôs, foi para o camarim e as pernas o seguiram, procurando respostas e tal luz da vida que a lâmpada fingia dar.
Eu paguei para ver os Ídolos, é tudo entretenimento, não que eu goste de ver braço virando perna, mas é que tava na cara que ia ser furada esse papo de herói. Não sei se você vai acreditar no que eu vou te contar, mas preciso falar de qualquer jeito - eu vi tudo de perto e não toquei na luz vermelha. Eu vi de camarote todo mundo esmilinguindo e o homem-sem-rosto indo embora e os aplausos do outro lado do palco, e o fim da dança afrobeat com todos partindo para seus lares. Eu vi com meus próprios olhos...
E no final, bem no final, cheguei pertinho, subi no tablado, olhei aquela luz que fazia o mundo girar (realmente era bonita), fiquei olhando por dois minutos, dois longos minutos, bem perto, colado, rosto vermelho.
Com um estalo, levantei, pisei naquela merda, e a chutei bem longe, pra que nunca, nunca mais, os Ídolos pudessem desconfiar que, num dia, num remoto dia, pisou ali naquele mesmo palco alguém que conseguiu encontrar a salvação no escuro. Deixa as pernas espenearem...